O melhor filme gospel que existe, curiosamente, é um dos menos conhecidos no meio cristão, bem como possuidor da atmosfera mais sombria. Sua qualidade, basicamente, repousa em um ineditismo gritante que é facilmente percebido quando comparado aos demais longas do segmento: o terror. Contudo, como não se bastasse isso, o terror visto nele não é o gore (repleto de criaturas assustadoras e carnificina), e sim algo tipicamente cult, isto é, de cunho psicológico semelhante ao estilo de cinema que faziam, por exemplo; os diretores Stanley Kubrick (de O Iluminado) e Roman Polanski (de O Bebê de Rosemary). O longa-metragem em questão se chama 666- A Marca da Besta e foi produzido em 1972.
Nele, constatamos ser perfeitamente possível criar uma narrativa escatológica que se passe em plena Grande Tribulação sem que haja a necessidade de grandes investimentos (o que, cá entre nós, muitas vezes acaba resultando em efeitos especiais datados e cenografia pobre; sendo que até mesmo para a grande Hollywood um evento de tamanha magnitude torna-se difícil de ser transposto para as telas de maneira convincente). De quebra, a narrativa ainda alcança a façanha de tratar do tema por uma ótica literalista, porém de forma neutra (leia-se "sem cair para pós ou pré-tribulacionismos"). Detalhe: seu produtor, Mal Couch, formou-se no Centro de Pesquisas e Estudos Pré-Tribulacionistas de Tim LaHaye, publicou dezenas de publicações sobre escatologia dispensacionalista e fundou o Seminário Teológico Tyndale.
Pautado em sequências de diálogos extremamente ricos e inteligentes que aos poucos vão situando o espectador quanto ao que está acontecendo na trama, 666- A Marca da Besta é aquele tipo de longa que, na medida em que vai avançando, nos instiga a querer saber cada vez mais como tudo acabará. Conforme adiantei acima, o roteiro é inteligente, o que significa que não subestima o raciocínio do público entregando informações mastigadas e clichês do gênero. Nada é óbvio nele (começando pelo título). Algumas vezes, inclusive, as falas dos personagens chegam a ser um tanto incompreensíveis, o que torna a experiência mais intensa, já que demanda uma certa atenção à qual boa parte das pessoas não está habituada na hora em que se senta para conferir determinada produção cinematográfica.
Tudo isso, é claro, selado por um cenário simples, porém minimamente crível (o que significa: "capaz de transferir sua ambiência claustrofóbica a quem está vendo") para a proposta do roteiro e abrilhantado por atuações que dão conta do recado. Neste ponto, devo enfatizar a sabedoria da produção em escalar um elenco que, mesmo pequeno (8 pessoas, das quais duas só participam com a voz), é munido de pelo menos três bons e experientes atores: Joe Turkel, Byron Clark e John O'Connell: todos três com currículos extensos repletos de participações em cinema e TV, sendo Turkel (que faz o protagonista) o de maior renome (esteve em Blade Runner- O Caçador de Androides e no já citado O Iluminado).
Evidente que não irei estragar o final aqui, porém devo dizer que, para quem não o compreender; certamente será incômodo, perturbador e enigmático. Ao menos foi assim comigo, quando o assisti duas vezes em VHS antes mesmo de ser crente. Entretanto, é sob tamanho ar de estranheza que este longa apresenta a mensagem do Evangelho da forma mais poderosa feita no cinema até hoje, pois prega não com declarações e discursos, mas sim levando o espectador à uma inevitável e desconfortável reflexão em seu desfecho. Definitivamente, é uma obra que pede para ser conferida em mais de uma ocasião.
Este é 666- A Marca da Besta: uma ficção científica de terror sem firulas, modesta e que compensa a pouca estrutura técnica de que dispõe com uma precisão cirúrgica. Os caras realmente tiraram leite de pedra aqui. É um filme B rodado com a ousadia de um filme grande.
Apenas mais algumas observações que não podem passar batidas: o famoso plot twist (recurso narrativo de reviravoltas inesperadas com base em pistas distribuídas durante a trama) amplamente utilizado no cinema atual, especialmente nas produções de M.Night Shyamalan (diretor de O Sexto Sentido e Fragmentado) e na série de filmes Jogos Mortais; encontra-se presente em 666- A Marca da Besta que, vale a pena repetir, é de 1972. Diga-se de passagem, o longa-metragem não foi precoce apenas neste quesito, uma vez que apontou sutilmente a relação entre o ambientalismo e a Nova Ordem Mundial, o uso de inteligência artificial, a ideia de bunkers visando a guarda de itens importantes para a humanidade e a menção ao Clube de Roma (que fora criado em 1966, mas só veio a tornar-se famoso através de seu relatório eugenista intitulado Os Limites do Crescimento, de 1972. Em outras palavras, o filme acertou na mosca quanto à consolidação do Clube de Roma entre as principais facções globalistas).
Infelizmente, talvez pelo fato de justamente ser um filme indigesto e popularmente nada palatável, ele jamais ganhou a notoriedade merecida, de modo que atualmente é impossível achá-lo online na internet. A única maneira de adquiri-lo é direto pela distribuidora BV Films ou tendo um amigo que lhe dê de presente. Obrigado, Renato Teixeira!
Leandro Pereira
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